Incontestavelmente o dia estava péssimo. Aia estava de mau humor e acabou por me deixar tomar conta do corpo da forma que eu quisesse. Porém, quando ela desanda a ter essas crises as coisas acabam não tendo tanta graça quanto usualmente têm. Ouvir suas reclamações ao sentir o gosto enferrujado do sangue em meu paladar não tem preço. De qualquer forma, eu deveria aproveitar esta oportunidade para que o dia não fosse um desastre por completo.
Hueco Mundo em sua maior parte do tempo caracterizava-se por ser um lugar quieto e monótono, banhado eternamente pelo brilho da lua e coberto pela inextinguível areia. Por mais que eu gostasse da existência que nos tornamos após a morte, aquele local era insuportavelmente chato. Cabia então ao Mundo Humano saciar nossa sede por diversão.
Conforme levantava lentamente da areia, meu corpo esticava-se e colocava os músculos para trabalhar. As fileiras de dentes afiadíssimos não demoravam a ser expostas a brisa do Hueco Mundo ao bocejar de forma libertadora. Agora alongado, colocava-me a transpassar o portal que me levaria ao Mundo Humano. Essa transição entre uma dimensão e outra acaba por não me agradar muito. Durante a alteração sinto como se estivesse sendo engolido, causando dor de cabeça algumas vezes. De qualquer forma, lá estávamos.
Até o aroma deste lugar consegue ser mais agradável que o do Hueco Mundo. A cada passo que eu dava, um cheiro diferente de alma era farejado pelo meu focinho. Não consegui conter a animação e acabei por esboçar um modesto sorriso. Erguia a cabeça e novamente farejava o ar em busca de alguma alma que valesse a pena perseguir. Nada que valesse a vinda fora encontrado, porém, pude sentir um acúmulo de almas em algum lugar rumo ao norte. Não eram minhas refeições preferidas, mas compensariam o trabalho de ter me deslocado até aqui.
Minhas patas não demoraram até colocarem-se a correr. Minha forma física facilitava a movimentação e, em meio ao amontoado de casas, saltava de telhado em telhado até que o destino fosse finalmente alcançado. Ainda um pouco distante, pude observar cinco almas que aglomeravam-se em torno de algo. Apesar de insignificante, não consegui identificar exatamente o que era.
– Por qual de vocês eu começo? Perguntava-me aos sussurros, incapaz de conter a excitação.
– Aoi, vamos voltar ao Hueco Mundo. A voz feminina ecoava em minha mente. Era Aia, estava demorando a perturbar.
– Agora não, estou caçando não está vendo?! Sequer esperava por sua resposta e, em um movimento repentino, saltava em direção as almas desprevenidas.
Dois ou três ágeis movimentos foram o suficiente para me colocar sobre as almas. Aproveitando-me de meu tamanho e peso, pressionava-as contra o solo ao deitar sobre seus corpos e bloquear seus movimentos com as patas dianteiras. A gritaria daquelas almas era algo realmente irritante.
– Apenas calem a boca. Conforme proferia, sentia em minha mandíbula a consistência de um dos alvos. Não era o melhor gosto do mundo, mas dava pro gasto.
A diversão com aquelas almas não fora grande coisa. Pretendia torturá-las antes de devorá-las, porém não esperava que Aia fosse me perturbar tão cedo. De qualquer forma, após a primeira rapidamente mastiguei e ingeri as demais. Insatisfeito, coloquei-me a atravessar novamente o portal, voltando à monótona rotina em Hueco Mundo.
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